O “Manuscrito Kiffin” (MS K)

Este documento erige a história dos primeiros Batistas Particulares de Londres, de 1633 à publicação da Confissão das Sete Igrejas, em 1644. Foram aqueles que lideraram esse grupo de igrejas, e Kiffin entre eles, que foram responsáveis por um programa nacional de evangelismo, plantação de igreja e desenvolvimento de associações durante o período dos 1640 tardios e 1650.

B. R. White, Who Really Wrote the “Kiffin Manuscript”?, p. 8.

*

O assim chamado “Manuscrito Kiffin”, doravante MS K, é um dos documentos conhecidos mais importantes para o estudo histórico das origens batistas a partir da tese separatista-puritana. Apesar de todas as suas limitações, é um documento que registra o advento da prática imersionista entre os batistas e o surgimento daquelas que seriam, mais tarde, chamadas de Igrejas Batistas Particulares. Pretendo oferecer um breve histórico desse documento e, ao final, uma tradução do mesmo para a língua portuguesa.

A menção inaugural do manuscrito se deu no The History of the English Baptists, de Thomas Crosby. Há muitos problemas envolvidos na citação elaborada por Crosby do suposto manuscrito, mas isso merece uma atenção especial em outro momento. Por ora, eis a certidão de nascimento do manuscrito nos livros de história batista:

Isso está de acordo com um relato dado sobre a questão em um manuscrito antigo, que diz-se ter sido escrito pelo Sr. William Kiffin, que viveu naqueles tempos e era um líder entre aqueles daquela inclinação.

English Baptists, vol. 1, p. 101.

De que forma o MS K teria chegado às mãos de Crosby? A história é sinuosa.

Quando da morte de Benjamin Keach (1704), pastor controverso e lendário da igreja Batista Particular de Horselydown, seu sucessor no ministério foi Benjamin Stinton (1676-77 – 1719). Stinton era uma figura igualmente promissora, mas sua morte precoce se fez sentir e lamentar tanto entre Batistas Particulares quanto entre Batistas Gerais, devido à sua simpatia ecumênica. Thomas Crosby se converteu às convicções batistas sob o ministério e púlpito de Keach, e acabou desposando sua filha, Rebecca. Stinton, por sua vez, casara-se com outra filha de Keach, Elizabeth. Crosby era, assim, muito próximo e leal à família Keach-Stinton. Em 1706, uma encomenda expressiva foi solicitada, conforme nos descreve W. T. Whitley:

Em 25 de março de 1706, uma importante reunião da Associação [de Middlesex?] foi realizada, cujas Minutas originais foram examinadas para esta informação. Entre outras questões, foi acordado que uma História Batista era gravemente necessária, e a reunião encomendou a matéria a Joseph Stennet. Ele tinha, à época, 43 anos, havia sido bem educado em uma escola de gramática e era familiarizado com diversas línguas, tanto Europeias quanto Asiáticas, de forma que ele, por algum tempo, ganhou a vida enquanto mestre-escola em Londres e alcançou alguma reputação por suas traduções, tanto em prosa quanto em verso, e por sua proficiência em um novo ramo, a escrita de hinos para serem cantados em cultos sacramentais.

Benjamin Stinton, pp. 194-195.

O problema é que Stennet se perdeu na tarefa de escrever uma história dos batistas e, falecido em 1713, jamais completou a tarefa. Que passou, então, às mãos de Benjamin Stinton, a esta altura já sucessor relutante do púlpito de Benjamin Keach, seu sogro. A história prossegue da seguinte forma, como relata B. R. White:

Foi em 1711 que Stinton começou a transcrever certos manuscritos antigos e seções de diversas obras publicadas em um caderno que agora é uma das posses mais raras da Angus Library, no Regent’s Park College, Oxford, Inglaterra. A maioria desses excertos, todos escolhidos e preservados por causa de seu valor para a história dos Batistas que ele esperava escrever, não têm grande importância para nós hoje, já que os livros dos quais foram tirados estão todos ainda disponíveis, sem muita dificuldade, para o pesquisador moderno. Há, entretanto, quatro dos transcritos de Stinton que são de uma importância única, já que eles são todos cópias de documentos, ou manuscritos, agora perdidos.

Who Really Wrote, p. 4.

Os papeis que White menciona, organizados por Stinton, foram encontrados como parte de um único grande documento (ou manuscrito), transcrito por George Gould, pastor batista do século XIX. O manuscrito todo – chamado eventualmente de Manuscrito Gould – é composto por trinta seções numeradas, cada uma delas correspondente a um manuscrito (MS) ou a um excerto de um livro publicado até 1712. Whitley, que faz uma descrição breve de cada uma das trinta seções, apresenta o documento como um todo da seguinte forma:

[…] o presente autor e o Sr. Champlin Burrage, independentemente, voltaram sua atenção a um terceiro manuscrito, agora propriedade do Diretor Gould,1 tendo sido copiado por e para seu pai, George Gould of Norwich. Após estudo cuidadoso deste, as partes importantes foram copiadas pelo presente autor, linha por linha, no começo de 1905. Na primeira página está o título: – “A REPOSITORY of Divers Historical Matters relating – to the English Antipaedobaptists. Collected from Original Papers – or Faithful Exctracts. – Anno 1712 – I began to make this Collection in Jan: 1710-11.”2 Cada [um dos dois] estudiosos,3 a uma só vez inferiu, ao descobrir que o número 26 na coleção4 era esta mesma correspondência Americana, que o “Eu” do Repositório era Stinton.

Historical Researches, pp. 199-200.

G. P. Gould, filho de George Gould, foi Diretor do Regent’s Park College, em Oxford, entre 1896 e 1920.

“UM REPOSITÓRIO de Diversas Questões Históricas relacionadas – aos Antipedobatistas Ingleses. Coletadas de Papeis Originais – ou Extratos Fieis. – Anno 1712 – Eu comecei a fazer esta Coleção em Jan: 1710-11.”

Isto é, Whitley e Burrage. 

A seção 26 do documento traz uma carta escrita para Benjamin Keach da parte de Benjamin Stinton, uma resposta à missiva anterior de Keach. A seção traz, ainda, uma carta escrita a partir da Filadélfia, antiga Província (Colônia) de Pennsylvania, relatando os trabalhos de Elias Keach, filho de Benjamin Keach – daí “correspondência Americana”. 

Das trinta seções do manuscrito, as quatro primeiras são de extrema relevância para a compreensão da origem dos batistas no século XVII. A primeira traz um manuscrito conhecido como “Jessey Memoranda”, um relato de natureza muito semelhante ao MS K, relatando rupturas e eventos transcorridos na igreja JLJ (Jacob-Lathrop-Jessey); a segunda seção traz o próprio MS K; a terceira, a 1CFL, de 1644, subscrita por sete igrejas londrinas; a quarta, por fim, apresenta um documento relatando discussões a respeito do batismo infantil ocorridas na igreja de Henry Jessey. Excetuando-se a 1CFL, os demais documentos originais foram perdidos. Além disso, esses três documentos trazem uma importante similaridade: acredita-se que foi Stinton que forneceu os títulos desses documentos, e, neles, registrou que foram papeis fornecidos a ele por um tal Sr. Richard Adams. Ora, Richard Adams é ninguém menos que o sucessor de William Kiffin na igreja Batista Particular de Devonshire Square. É a partir daqui que se infere, comumente, que o MS K teria sido escrito por William Kiffin, discussão à qual voltaremos em outro momento.

 

Conclusão

Assim, temos o seguinte quadro: o MS K é um documento provavelmente escrito por William Kiffin (1616-1701), que o legou a Richard Adams (ou foi por este encontrado), seu sucessor, antes ou depois de sua morte, junto com outros dois manuscritos. Adams, por sua vez, teria repassado esses documentos, em contexto desconhecido, a Benjamin Stinton. Stinton começara, então, a compilar diversos manuscritos e excertos bibliográficos para cumprir a tarefa que Stennet havia negligenciado. Dentre esses documentos e livros estavam os três manuscritos recebidos de Richard Adams. Mas a morte precoce de Benjamin Stinton, em 1718/19 (calendário antigo), fez com que os documentos, pela força dos laços familiares, chegassem às mãos de Thomas Crosby. O MS K ainda passaria pelas mãos de um pedobatista antes de ser empregado na obra de Crosby, mas essa é uma outra história.

 

Tradução

Não houve um único historiador batista de peso que não tenha se debruçado e opinado a respeito do MS K. Os documentos originais de Stinton se perderam, mas restaram quatro cópias manuscritas dos originais. Por isso, julguei por bem oferecer uma tradução do documento. Não tenho conhecimento de nenhuma outra tradução do manuscrito jamais feita para o português, por isso a ofereço em duas versões, sendo (A) uma tradução o mais literal possível, e (B) uma tradução o mais legível possível. Ambas as traduções foram baseadas na versão apresentada por B. R. White (1967). O manuscrito ocupa as páginas (10), (11) e (12) do conjunto de documentos de Stinton chamado Um Repositório de Diversas Questões Históricas relacionadas aos Antipedobatistas Ingleses, um corpus documental abrigado na Angus Library do Regent’s Park College, na Universidade de Oxford, Inglaterra.

Os eventuais reparos que venham a ser realizados nos documentos serão atualizados nos links abaixo, e uma nota referenciará a data da última atualização. Em breve, oferecerei também uma versão com notas de rodapé que são de grande importância neste documento, cotejando os comentário de B. R. White e W. T. Whitley.

 

*

Tradução MS K(A)

Algumas observações a respeito da tradução:

I. Inseri o menor número possível de artigos e preposições, buscando oferecer a experiência original do manuscrito.

II. Traduzi os pronomes de tratamento, mas mantive os nomes como no original.

III. Procurei manter, tanto quanto possível, as palavras em caixa alta.

IV. Alterei o mínimo possível da pontuação original.

V. Em alguns casos a ortografia precisou ser atualizada, como p. ex. Iohn = John.

VI. Optei por utilizar a tradução mais correspondente o possível de palavras, ainda que a semântica do termo em inglês não condiga com o primeiro significado da palavra em português; ainda assim, as palavras guardam, em algum nível, uma semântica próxima.


Tradução MS K(B)

Última atualização: 03.07.18

Inúmeras modificações foram realizadas, tanto nas palavras originais quanto na ortografia, pontuação e construção sintática. O propósito é que todas as dificuldades de leitura do MS K_A sejam sanadas pelo MS K_B.


Tradução MS K*

CROSBY, Thomas. The History of the English Baptists, from the Reformation to the Beginning of the Reign of King George I, vol. I. Londres, 1738.

STINTON, Benjamin. A Repository of Divers Historical Matters relating to the English Antipaedobaptists. Manuscrito em Angus Library, Regent’s Park College, Oxford University.

WHITE, B. R. Thomas Crosby, Baptist Historian (I). In: Baptist Quarterly, 21.4 (Out 1965), pp. 154-168.

______. Baptist Beginnings and the Kiffin Manuscript. In: Baptist History and Heritage, vol. 2, n. 1 (Jan 1967), pp. 27-37.

______. Who Really Wrote the “Kiffin Manuscript”? Baptist History and Heritage, vol. 1, n. 3 (Out 1966), pp. 3-14.

WHITLEY, W. T. Benjamin Stinton and his Baptist Friends. In: Transactions of the Baptist Historical Society, n. 1.4 (Janeiro 1910): 193-196.

______. Stinton’s Historical Researches. In: Transactions of the Baptist Historical Society, n. 1.4 (Janeiro 1910): 197-202.

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