O “terremoto” da Luz Interior: Dois historiadores se debruçam sobre a relação entre Quakers e Batistas.

Existe um paradoxo na designação “quaker”. A confiar na autobiografia de George Fox, o primeiro a empregar esse nome à Sociedade dos Amigos da Verdade, ou dos Filhos da Luz, como eles mesmos se chamavam, teria sido Gervase Bennet, quando confrontou, na posição de juiz, as doutrinas de Fox. O emprego do termo teria sido quase lisonjeiro, já que Fox teria feito Bennet “tremer” (to quake) diante da Palavra do Senhor exposta pelo réu. Mas é evidente que a palavra poderia assumir outro significado, qual seja, o de “medrosos” ou “tremedores”, o que se alinhava confortavelmente, diga-se de passagem, ao espírito quietista dos quakers, que enfatizavam a espiritualidade interior.

Como os levelers, os diggers, os seekers, os ranters e os dippers, estes últimos referindo-se aos batistas, a nomenclatura de quakers foi fartamente empregada como caráter depreciativo na Inglaterra seiscentista. São geralmente alocados, portanto, na esfera do vasto rol de “seitas” germinadas durante esse período. Mas há um fenômeno de curiosidade especial para os batistas no que concerne aos quakers, o qual diz respeito aos inúmeros intercâmbios e convivências entre esses dois grupos.

Vejamos uma descrição interna dessa relação entre quakers e batistas e, em sequência, uma avaliação mais recente e pontual do fenômeno. A narrativa, aqui, é de Robert Barclay – não o famoso quaker escocês do século XVII, mas o não tão famoso quaker inglês do século XIX. Este dedicou-se, para além de sua própria espiritualidade, à tarefa da historiografia. Fez publicar, em 1877, sua obra The Inner Life of the Religious Societes of the Commonwelth: considered principally with reference to the influence of church organization on the spread of christianity. As notas de rodapé numeradas com algarismos romanos são notas originais do texto.

Devemos agora empreender traçar a história da Sociedade fundada por [George] Fox, simplesmente em seu nascimento prático, introduzindo matérias de doutrina somente onde seja absolutamente necessário para elucidar nosso assunto. Os materiais a partir dos quais os capítulos subsequentes se moldam foram extraídos, com considerável labora, de uma massa de documentos no corpo dos manuscritos da Sociedade, minutas de reuniões e registros, bem como panfletos.

[…]

George Fox deixou sua casa em 1643. Ele nos diz que tinha um tio em Londres, de nome Pickering, que era um Batista. Embora os Batistas fossem “afetuosos então”, ele não pôde unir-se a eles. Algumas pessoas Cristãs “afetuosas” gostariam que ele ficasse em Londres, mas ele estava receoso de fazê-lo, e voltou para Leicestershire.

[…]

Em 1647 e 1648, ele pregou em algumas reuniões Batistas e reuniões de Cristãos professos que se reuniam para orar e expôr as Escrituras, e às vezes a Bíblia era entregue a ele para expôr e defender suas visões, do que ele nunca se furtou, citando capítulo e verso. Ele também foi de cidade em cidade, frequentemente falando às pessoas “mais ímpias” do país.

[…]

Em 1649, Fox desejou uma conversa* com Samuel Oates, o célebre pregador Batista Geral, e “outros cabeças deles”. Eles tiveram uma conferência religiosa e despediram-se amorosamente dele.¹ “Foi”, diz Sewel, “no ano de 1648, que diversas pessoas buscando o Senhor se tornaram irmãos crentes e entraram em sociedade com George Fox.”

[…]

Existe uma incrível coincidência entre os principais pontos sobre os quais insistiam os primeiros Amigos, em sua ousada e destemida pregação itinerante, e o ensino de John Smyth, de Amsterdam; cuja conexão das opiniões com aquelas do célebre Hans de Rys e Caspar Schwenkfeld foi previamente demonstrada. Todo o seu sistema de teologia era um protesto contra a pregação do partido Puritano. Eles ensinaram às grandes massas populares que o amor de Deus não era restrito a um pequeno círculo de eleitos, mas abrangia acada um de Seus filhos – que Cristo morreu pelo pecado de todo o mundo. […]

A nova sociedade chamava-se a si mesma, em seus primeiros documentos e cartas, no começo do movimento, de “Os Filhos da Luz”. Esse nome era bastante novo na Inglaterra, mas tinha, bem antes disso, sido usado por alguns Batistas Continentais.²

[…]

É um grande erro – um erro que produziu sérias consequências à Sociedade que Fox fundou – supor que Fox, ao protestar contra um “ministro mercenário”, protestou contra todos os pagamentos de ministros do Evangelho. O que ele opôs foi um ministro que fosse marionete do poder civil, e contratado por ele. Suas visões eram precisamente as mesmas daquelas de muitos, provavelmente da maioria, dos Independentes e Batistas daquele período. Taylor assim descreve as visões dos Batistas Gerais: “Os ministros de Cristo, dizem eles, que receberam livremente de Deus, devem livremente ministrar a outros; e aqueles que têm coisas espirituais ministradas a eles, devem livremente transmitir coisas necessárias aos ministros por conta de sua tarefa; mas dízimos ou qualquer manutenção forçada, nós negamos completamente serem para a manutenção de ministros do Evangelho.” Ambos os Presbíteros e Mensageiros dos Batistas Gerais, geralmente tocavam negócios e serviam à igreja gratuitamente, recebendo pouco para além das despesas de viagem. Mesmo em 1679, era considerado objeto de censura da igreja afirmar “que homens devem ter um sustento fixo para pregação”. Os princípios e práticas dos Batistas Calvinistas eram originalmente os mesmos. Os Independentes e Batistas, que foram denunciados por Fox e seus amigos em termos similares aos ministros Presbiterianos, como sendo “ministros mercenários”, foram aqueles que, contrariamente aos seus princípios, receberam sustento do Estado. Isso foi fortemente contrariado em 1654 por diversas Igrejas Batistas, em uma “Declaração de várias das Igrejas de Cristo”, &c. Eles comparam a Court of Tryers à High Comission Court, e a chamam de “a imagem esculpida do poder mundano, criando um clero mundano para fins mundanos”, e denunciando-a como sendo “contra a regra do Evangelho e da fé em Cristo, e destinada a ser destruída, como o Papa e o Prelado”.

* Literalmente, entrevista. 

¹ Samuel Oates foi enviado como um pregador itinerante pela Igreja de [Thomas] Lamb, em Bell Alley, Londres. Ele era um pregador popular e aceitável, e um controversista hábil. Ele era um tecelão por ofício, e um homem jovem. Em 1645, ele havia trabalhado em Sussex e Surrey, e esteve aprisionado e julgado por assassinato, simplesmente porque uma jovem moça que ele havia batizado (e que melhorou sua saúde por isso) acabou morrendo algumas semanas depois de seu batismo. Tamanho era o respeito em que ele era tido, que numerosas pessoas desciam de seus coches vindos de Londres para visitá-lo na prisão. Ele havia pregado em Dunmow, e em uma de suas visitas, a multidão o lançou no rio para “mergulhá-lo totalmente”. Em outra ocasião, alguns estranhos vindos de Londres foram confundidos com Oates e seus amigos, e foram capturados e “arfados vigorosamente”. Quando Fox esteve em Londres, em 1643, havia quatro congregações, pelo menos, de Batistas Gerais, sendo que uma delas tinha sido estabelecida há vinte anos. […] Naquela época, a Igreja de Lamb estava em condição próspera (em 1640), e parece razoável supor que Fox entrou em contato com os Batistas Gerais quando em Londres. Fosse possível provar que seu tio Pickering pertencia a uma dessas Igrejas, seria um elo interessante da corrente. Nós bem podemos supor o objetivo de Fox ao buscar uma conversa* com Samuel Oates e os pregadores Batistas Gerais. Fox, sem dúvida, sabia dos antecedentes de Oates e da íntima proximidade de seus princípios religiosos. Tivesse sido ele bem sucedido em seu intento, um jovem, hábil e resoluto pregador teria sido garantido para a Sociedade.

² Ver, do Professor Cornelius, “Geschichte des Munster’s Aufruhrs,”, p. 67, v.2, O Professor Cornelius escreve a mim, “A designação dos Batistas como ‘Kinder des Lichtes,’ eu tirei do documento ‘Brüderliche Vereinigung.’ Era também usado pelos próprios Batistas, eu não tenho dúvida de que era muito comumente usado por eles.” Ele, entretanto, não tem conhecimento de que qualquer porção especial das Sociedades Batistas a usaram em “por assim dizer, um sentido técnico. Havia, entre os irmãos, aqueles que tinham as cerimônias (i.e. Batismo e a Ceia do Senhor) em pouca ou nenhuma estima. Ibid p. 273. […]

 Inner Life, pp. 253-273, passim.

Vejamos, agora, a abordagem de um batista. W. T. Whitley, em sua história dos batistas britânicos, aprofunda o tema explorando as relações especialmente próximas entre quakers e Batistas Gerais:

George Fox encontrou a Luz Interior em 1647, depois de quatro anos de conflito espiritual, e os Batistas em Mansfield foram os primeiros a compartilhar de sua experiência e se tornar “Filhos da Luz”. Quatro anos depois, ele se deparou com outros Batistas em Westmoreland e Cumberland, e ganhou muitos deles, incluindo três ministros. Esses tornaram-se ardentes propagandistas, e dentro de três anos a luz estava brilhando nos grandes centros de Bristol, Londres e Norwich, por toda a Inglaterra e Irelanda e Escócia adentro. O clero do norte declarou que todos estavam subitamente inflamados, muitos inquietos, fundações balançadas. Igrejas Batistas inteiras mudaram suas visões, outros foram terrivelmente divididos, especialmente na ala [dos Batistas] Gerais. Em quase todos os livros de minuta¹ datados deste período existem sinais do alvoroço causado em toda parte do país. Fox era um disputante ardente em Carlisle, Leicester, Horsham, Bristol, Leith, Edinburgh, Stirling, Leominster, Warwickshire, Dorset e alhures; ele até mesmo tentou converter o Coronal Packer em uma conversa em seu palácio de Theobalds. James Parnell, um rapaz de dezenove [anos], enviou 43 perguntas à igreja de Fenstanton, o que levou a uma discussão em uma casa privada, diversas cartas acrimoniosas e muita lamentação aos líderes Batistas. O jovem Bunyan esteve envolvido em frequentes disputas. Samuel Fisher, ex clérigo e esteio dos Batistas Gerais em Kent, foi convertido e cumpriu um serviço esplêndido para sua nova causa. Pode ser dito que a força dos Batistas Gerais foi drenada por essa modificação de seus princípios, que depositava tamanha ênfase na imanência de Deus, que as ordenanças externas foram descartadas e um ministro especializado tornou-se obsoleto. As tensões escalaram por anos, e foi somente no período Hanoveriano² que Quakers e Batistas Gerais puderam ser induzidos a abandonar a oposição aberta.

¹ Ou churchbooks, livros de atas e outros registros importantes das igrejas.

² Que teve início no século XVIII.

A History, pp. 84-85.

Conclusão

A força com que o movimento quaker atingiu as igrejas Batistas Gerais e o trânsito livre entre figuras célebres desses movimentos, em ambos os trajetos, nos permite afirmar que havia uma proximidade muito mais visível entre os Batistas Gerais e os quakers do que entre estes e os Batistas Particulares. Os Batistas Gerais, assim, podem ser mais coerentemente distribuídos na multidão de seitas religiosas inglesas, todas elas em alguma medida pautadas por um ideal de “free-church” e influenciadas por aspectos da Reforma Radical, do que os Batistas Particulares. Mas é importante notar que, aparentemente, o maior ponto de fricção entre esses grupos dizia respeito ao papel e relevância dos sacramentos e da liturgia. Significa, inclusive, que os Batistas Gerais estavam mais propensos a serem seduzidos pela abordagem pietista e espiritualista do Cristianismo do que os Batistas Particulares, próximos que estavam das doutrinas reformadas inglesas.

É claro que Robert Barclay, ao fazer uma releitura da história dos quakers, busca – quase insistentemente – alguma proximidade dos Batistas, no sentido de assegurar, também, maior legitimidade às doutrinas desposadas por seus fundadores. O século XIX, em que sua obra foi redigida, é notável pelo uso político das reconstruções históricas. Mas Whitley, que conhecia bem a realidade Batista Geral, não titubeia em descrever o “tremor” que esses “quakers” provocaram Reino Unido afora nas igrejas Batistas Gerais. Não há evidências, contudo, de que o terremoto tenha feito muitas vítimas entre os Batistas Particulares.

*

BARCLAY, Robert. The Inner Life of the Religious Societes of the Commonwelth. Londres: Hodder and Stoughton, 1877.

WHITLEY, W. T. A History of British Baptists. London: Charles Griffin & Company, 1923.

5 responses

  1. Existem acusações contra a posição de Hanserd Knollys no que diz respeito aos cânticos espirituais. Isaac Marlow acusou Knollys de ter sido influenciado pelos Quakers.

    Realmente, existem semelhanças na doutrina da liberdade de consciência. Acredito que possam ter tido algum contato mais próximo. Você conhece algum material ou alguma evidência que nos fale de um suposto contato entre Hanserd Knollys e os Quakers?

    Curtido por 1 pessoa

  2. Pedro, bom dia. No trecho “…Suas visões eram precisamente as mesmas daquelas de muitos, provavelmente da maioria, dos Independentes e Batistas daquele período…” quando se fala de “Independentes” e “Batistas”, quem seriam estes “Independentes”?

    Curtido por 1 pessoa

    • Olá, Edson, obrigado pela interação. Os Independentes são reformados puritanos que defendiam uma forma de governo congregacional, portanto fizeram uma dissensão em relação à igreja instituída – seja ela Anglicana, seja ela Presbiteriana. Os Independentes tinham na Declaração de Savoia de 1658 – que é uma modificação da Confissão de Fé de Westminster – os seus parâmetros doutrinários, e na Plataform of Polity (uma espécie de introdução à Confissão) as diretrizes de um governo congregacional. Eram pedobatistas, em geral, e divergiam dos presbiterianos no que tange à forma de governo eclesiástico, basicamente.

      Abraços!

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  3. Pingback: Richard Younge e as origens do batismo imersivo: Um poema anti-quaker e anti-batista. « Rastro de Água

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