Anacronismo (s.m.)
- Um erro em cronologia. Especialmente: uma alocação cronológica errônea de pessoas, eventos, objetos ou costumes em relação um ao outro.
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Os Presbiterianismos ingleses
Tenho chamado atenção, há algum tempo e de diversas formas, para a multiplicidade e complexidade das teologias e práticas “reformadas” durante o século XVII, especialmente no contexto britânico. O alerta me parece oportuno para promover uma restauração saudável dos princípios reformados, inclusive os batistas, e não, como se poderia pensar, para frear esse risorgimento. É necessário retomar valores e princípios sem que, com isso, surjam caricaturas chistosas e pitorescas dos puritanos do século XVII e sem que os propósitos de aproximação e comunhão reformada se pervertam em projetos de dissensão e sectarismo.
Hunter Powell, em seu livro The crisis of British Protestantism, ilustra de forma mais que didática os múltiplos projetos eclesiológicos que disputaram o poder entre 1638 e 1644, destacando os graves pecados anacrônicos cometidos por historiadores que tentaram projetar conceitos, definições e denominações do século XX no século XVII. É fútil, por exemplo, falar em “presbiterianos”, “batistas” e “independentes” no século XVII se com isso entendemos “presbiterianos”, “batistas” e “independentes” da maneira como hoje se concebem os termos. Basta lembrar que não havia uma “igreja presbiteriana”, e sim uma forma de governo presbiteriano, o qual poderia, como veremos, ser defendido em inúmeras modalidades por homens que hoje jamais seriam considerados defensores de uma “igreja presbiteriana”. Um mergulho nas águas seiscentistas nos mostra que as nuances dos termos são muito mais elaboradas e complexas do que se poderia imaginar. Como afirma Powell,
[…] este livro endereça o fato de que nossas típicas categorias eclesiológicas estão delineadas muito menos claramente do que muitos gostariam que estivessem. […]
O modelo de conflito axiomático binário de “presbiterianos contra independentes” é um leitmotif historiográfico dominante do início dos anos 1640. […] O presbiterianismo e o independentismo têm sido retratados como categorias essencialmente monolíticas e estáticas, nas quais os historiadores devem conectar suas teses. […]
Nós veremos que a questão que devemos perguntar não é meramente se o presbiterianismo existia na Inglaterra antes de 1640 ou não, mas também quais tipos de presbiterianismo emergiram na assembleia de Westminster.
The crisis of British Protestantism, pp. 2-5.
Um dos pontos que nos interessa diretamente nessa leitura dos programas eclesiológicos do século XVII diz respeito à própria noção de “presbiterianismo”. Powell traduz o problema da seguinte forma:
Quando as palavras sínodo, presbitério ou assembleia nacional são usadas, elas vão se referir a grupos de anciãos² de várias igrejas reunindo-se para governar ou discutir questões atinentes às igrejas em suas regiões – ou país. Nos materiais de fonte primária, a palavra presbitério tem diversos significados, e, é claro, os poderes dados a tais assembleias foi um tópico debatido maciçamente. Muitos partidos² em Westminster concordavam que ela poderia se referir a um grupo local de anciãos de uma igreja particular que tinha uma responsabilidade única de cuidar daquele corpo. O significado da palavra frequentemente tem a ver com o contexto, e para o leitor – particularmente manuseando as minutas da assembleia – pode ser muito difícil saber como a palavra está sendo usada. […]
Enquanto os ministros congregacionais exibiam uma clara, e amplamente aceita, forma de governo de igreja, as rápidas mudanças de contextos religiosos e políticos na Inglaterra deu origem a variados presbiterianismos, ambos a norte e sul da fronteira.
¹ Elders, no original, termo plenamente intercambiável com “presbíteros”, neste caso.
² Não se trata de partidos formais, mas de grupos reunidos por afinidades teológicas e que geralmente argumentavam e votavam de forma coesa.
Idem, pp. 10-11; 18.
Ao longo do livro, Powell faz um ótimo trabalho em demonstrar os diversos “tipos de presbiterianismo” presentes naquele momento. Os debates teológicos que orbitavam os textos de Mateus 16 e 18, nomeadamente o problema do poder das chaves e da disciplina eclesiástica, deram ocasião para que diversas posições fossem ventiladas na Assembleia de Westminster acerca dos poderes de governo dos presbíteros e da igreja, das distinções entre poder executivo e jurisdicional, da estruturação de sínodos e autonomia das igrejas locais e diversas outras nuances, de sorte que “o presbiterianismo” emergente após 1644, presente no documento de 1646 e, grosso modo, defendido até o presente, foi resultado de um importante acordo – um acordo mais político do que teológico, aliás.
A análise de Powell mostra que, antes de 1644, antes de que um consenso presbiteriano fosse alcançado por meio da Assembleia de Westminster, o presbiterianismo e o congregacionalismo possuíam fonteiras muito mais tênues. Em janeiro de 1641, já em meio à Guerra Civil inglesa, uma petição em defesa de um governo eclesiástico episcopal foi protocolado e conhecido como “Prelatic Petition”. Em resposta a essa petição, um outro documento foi redigido por Jeremiah Burroughs – e talvez por Thomas Goodwin. Esse documento recebeu o nome de The Petition for the Prelates Briefly Examined, comumente referenciada como Petition Examined.
[…] de fato, a Petition Examined defendia que, de acordo com Atos 20, “todo o ônus de todas as questões da igreja em Éfeso foi deixada aos Anciãos”. Daí que, embora Harvey visse congregacionalismo na Petition Examined, ele se referiu à sua eclesiologia como “disciplina de Paróquia Presbiteral”.
A ênfase no papel do presbitério das igrejas particulares era uma questão predominante nos entornos dos panfletos antipreláticos¹ e contribuiu grandemente, portanto, para a confusão sobre o que os congregacionais estavam buscando. A ênfase, em todos os panfletos, era sobre um presbitério congregacional com muito pouca – ou nenhuma – ênfase nos sínodos. […]
¹ anti-prelatic, no original. O termo prelático deriva de “prelado”, usualmente utilizado como referência ao sistema episcopal inglês.
Idem, p. 26.
Hanserd Knollys e o cerne da questão
A Petition Examined fazia parte de um esforço conjunto de rejeição do episcopalismo, associado diretamente, naquele momento, à reminiscência persistente, incômoda e herética da Igreja Católica sob os reinados Stuart. “Havia um movimento claro de distanciamento dos bispos preláticos”, afirma Powell, “no sentido de alocar o poder eclesiástico nas igrejas particulares”. Assim, “o que era incerto é a natureza e o tipo de poder que deveria ser situado acima das igrejas, e neste ponto havia um amplo desentendimento” (Idem, p. 17). Eis o cerne do problema.
Ora, Hanserd Knollys, importante batista particular do período, compreendeu perfeitamente a questão. Em 1645, Knollys publicou A Moderate Answer unto Dr. Bastwicks Book. Dr. Bastwick era John Bastwick, um médico bastante envolvido em controvérsias teológicas, pelas quais, inclusive, acabou passando um bom tempo na cadeia durante o reinado episcopal de William Laud. Bastwick corria à margem, naturalmente, dos ministros reformados, mas em sua enorme erudição greco-latina, confrontou diversos pontos das doutrinas católicas e da eclesiologia separatista, fincando posição clara no que podemos, hoje, chamar de presbiterianismo clássico – resultante da Assembleia de Westminster.
O subtítulo da obra de Bastwick é, em si, muito significativo: Independency not Gods Ordinance: or A Treatise concerning Church-Government, occasioned by the Distractions of these times. Wherein is evidently proved, that the Presbyterian Government DEPENDENT is Gods Ordinance, and not the Presbyterian Government INDEPENDENT (caixa alta original do texto). Ou seja, Bastwick reconhece aqui duas modalidades de governo presbiteriano, o “dependente”, que seria jus divinum, e o “independente”, contrário às ordenanças de Deus.
A resposta de Hanserd Knollys nos diz muito sobre os termos e conceitos que frequentemente empregamos para nos referirmos ao complexo universo da Inglaterra seiscentista.
Eu não pretendo disputar com o Doutor a respeito de palavras, e, portanto, no tocante aos dois Termos, a saber, Dependente e Independente, hei de dizer apenas isto por ora: Que, se por Independente, o Doutor de fato quer dizer (como parece que ele pretende, pelo meu entendimento de muitas passagens em seu livro) um Governo Presbiteriano, que não possui Dependência em quaisquer questões meramente Eclesiásticas (senão [dependência] do Senhor Jesus Cristo, que é o Cabeça da Igreja); E se por Dependente ele também pretende (como em muitas outras passagens em seu livro me parece ser o seu significado) um Governo Presbiteriano que tem Dependência de uma suprema Judicatura de um concílio Comum de Presbíteros, e que deve, em questões Eclesiásticas, estar sujeito aos seus Decretos, Sentenças, Constituições e Ordenamentos de um concílio Comum, Colegiado ou Consistório de Presbíteros de Classe, Provinciais ou Sinodais; Então eu entendo que o Doutor não provou (nem jamais será capaz de provar) Que o Governo Presbiteriano Dependente é Ordenança de Deus […]
[…]
Em quarto lugar, [prova] que este Governo de Igreja Presbiteriano Deus tenha apontado como sua Ordenança, para ser continuada até o fim do mundo – o que, qualquer que resista, resiste a uma Ordenança de Deus – mas não prova que esse Governo de Igreja Presbiteriano é Dependente de uma suprema Judicatura de um concílio Comum de Presbíteros, ou que eles devam se submeter e se sujeitar, a si e a suas igrejas, aos Decretos, Sentenças, Constituições e Ordenamentos de um concílio Comum, colegiado ou corte de Presbíteros de classe ou Sinodais, o que o Doutor deveria ter provado para o tal Governo Presbiteriano que ele pretende, como fica claro pelas próprias palavras do Doutor, pag. 17, 18. […]
[…]
Agora, a verdade é que, embora os Apóstolos fossem chamados de Presbíteros nas Escrituras, ainda assim não se segue que eles agiam como Presbíteros, mas como Apóstolos (Atos 15). E eles não podem, dessa forma, ser um padrão e modelo para Presbíteros; Primeiro, porque os Apóstolos detinham o cuidado e a responsabilidade sobre todas as igrejas, 2 Cor. 11.28, mas os Presbíteros detinham o cuidado e supervisão de algumas Igrejas apenas, como em Éfeso (Atos 20.28) ou Filipos, Fp. 1.1, e isso o Dr. frequentemente insere em seu Livro. Que todas as Igrejas de que lemos no Novo Testamento (embora elas fossem governadas Presbiterianamente) eram dependentes de seus diversos Presbíteros, pag. 12. E segundo, porque isso faria os Presbíteros de fato Independentes, pois assim os Apóstolos estariam no Governo de todas as Igrejas; os Presbíteros de Jerusalém, de Éfoso e de todas as Igrejas seriam dependentes dos Apóstolos, e os Apóstolos unicamente dependiam de Cristo, por cujo Espírito Santo eles eram sempre guiados no governo de suas Igrejas […]
A Moderate Answer, passim.
Em outras palavras, Knollys não duvida, em nenhum momento, da ordenança divina de um governo “presbiteriano”, e chega a afirmá-lo e defendê-lo expressamente. Sua divergência diz respeito à modalidade de “presbiterianismo” que deve ser implementada. Um “governo presbiteriano de igreja” seria, simplesmente, uma igreja governada por presbíteros – o que diz muito, considerando o combate ao episcopalismo do período, mas diz pouco, considerando a multiplicidade de presbiterianismos possíveis. Daí a discussão acerca dos termos “dependente” ou “independente”. Fica claro que um presbiterianismo dependente seria aquele em que os presbíteros de uma igreja local dependem de decisões tomadas em instâncias superiores (concílios, sínodos etc.), e um presbiterianismo independente consistiria na autonomia governamental plena dos presbíteros de uma igreja local.
Um dado curioso a este respeito é que o próprio termo “independente”, frequentemente associado aos congregacionais ingleses do século XVII, era bastante confuso. Por um lado, diz Powell, os congregacionais “evitavam repetidamente” o termo “por soar politicamente insubordinado” e parecer “rejeitar qualquer tipo de comunhão com uma rede mais ampla de igrejas”. Por outro, nas minutas da Assembleia de Westminster, “a palavra era também usada em referência ao sistema Escocês presbiteriano de governo“, já que poderia significar “independente – ou à parte – do magistrado” (Idem, p. 10). Ou seja, o próprio termo “independente” poderia ser uma referência ao modelo de presbiterianismo mais influente na Assembleia de Westminster.
Conclusão
No interior da tradição reformada, à qual se filiam os batistas particulares, o coração do problema eclesiológico não dizia respeito à forma de governo dentro das igrejas locais, mas na forma de organização e autoridade entre as igrejas locais. A posição de Knollys poderia facilmente ser aceita, nos idos de 1640/41, por Jeremiah Burroughs, Edmund Calamy ou George Gillespie como uma alternativa válida, ainda que guardassem suas reservas. O “congregacionalismo presbiteral” só perdeu sua validade, inclusive no interior da Assembleia de Westminster, uma vez que o “presbiterianismo dependente” se impôs como o melhor caminho para a manutenção da ordem política e religiosa da nação.
Os batistas particulares, que sempre se colocaram em defesa do governo “congregacional”, entendiam bem que não se tratava de rejeitar o modelo presbiteral de governo, mas sim de defender uma reforma por completo do modelo episcopal. É interessante que William Kiffin, influente batista particular, tenha prefaciado o panfleto eclesiológico de Thomas Goodwin, A glimpse of Sions glory, no qual advoga um modelo congregacional presbiteral. Nesse sentido, os batistas se colocavam, ao lado dos “independentes”, como aqueles que desejavam levar à cabo a Reforma inglesa e purificar o puritanismo, purificando assim, ainda mais, a igreja. Para eles, o governo presbiteriano “dependente” seria, mais uma vez, uma solução mal acabada de reforma, um lance desesperado daqueles que, por temer o governo do povo e detestar o governo de um só, optaram pelo conforto da aristocracia eclesiástica.
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BASTWICK, John. Independency not Gods Ordinance: or A Treatise concerning Church-Government, occasioned by the Distractions of these times. Londres: Printed by John Macock, 1645.
KNOLLYS, Hanserd. A Moderate Answer unto Dr. Bastwicks Book. Londres: Printed by Iane Coe, 1645.
POWELL, Hunter. The crisis of British Protestantism: Church power in the Puritan Revolution, 1638-44. Manchester: Manchester University Press, 2015.