Enquanto pouco se pode saber sobre a vida de Ritor, sua teologia é ilustrativa do pensamento aliancista, sacramental e eclesiológico dos Batistas Particulares.
Samuel Renihan, From Shadow to Substance, p.80.
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Andrew Ritor, essa figura abantesma, é um de meus mais diletos autores entre os Batistas Particulares, em que pese sua linguagem idiossincrática. Juntamente com Christopher Blackwood, ele demonstra uma argúcia historiográfica ímpar, uma sensibilidade histórica singular e uma aplicação incomum no uso das referências. Em sua obra A Treatise of the Vanity of Childish Baptisme, temos uma das primeiras formulações de um aliancismo distintivamente batista. Meu interesse, entretanto, está em seu subtítulo: onde a deficiência do Batismo da Igreja da Inglaterra é considerada em cinco particulares. Como parte de um projeto muito maior, pretendo me debruçar nos próximos artigos sobre a relação entre os Batistas Particulares e a Igreja da Inglaterra. Vejamos o que Ritor tem a nos dizer sobre isso.
Em terceiro lugar, o poder, autoridade e ofício do ministério, pelo qual [o batismo] é então administrado, é recebido dos Bispos, os quais receberam seu poder do Estado Anticristão de Roma. Que os Bispos receberam seu poder de Roma é manifesto, e também confesso por eles mesmos em seu livro da Ordenação, dedicado ao Arcebispo Abbot, de Francis Mason, e impresso com autorização, Anno Dom. 1613. Liv. I. cap, 2. fol. II. Que assim o é, e que o ofício do ministério ali exercido é recebido dos Bispos, é algo evidentemente conhecido, a partir do que deve se seguir que, haja vista que o poder e autoridade pelo qual o Batismo é ali administrado não procede de Cristo, mas de uma Hierarquia Anticristã; [então] o Batismo, ele próprio, não é da parte de Cristo, mas igualmente do Anticristo.
[…] A verdade disso é vista em todos os Estados Civis, onde, quando as Ordenanças dos mesmos são administradas por tais pessoas que o Rei ou o Estado designou para tal, então elas devem ser reputadas e consideradas como Ordenanças do Estado. Mas se um estrangeiro, ou qualquer outra pessoa tal que o Rei ou o Estado tenha assim autorizado, aventurar-se a realizar um tal ato, ainda que ele o faça exatamente como aqueles que o fazem com autoridade¹ (no que alguns se acharam bastante habilidosos), ainda assim ele não é senão um impostor, e não melhor que um traidor contra o Rei e o Estado. Apliquemos isso ao presente caso: o Senhor Jesus Cristo, o Rei dos Santos, instituiu e deu ao seu Reino (que é a Igreja) diversas ordenanças para seu benefício, dentre outras, esta Ordenança do batismo, e para a sua administração ele deu regras e preceitos para sua Igreja, para a autorização de tais ou quais pessoas para administrá-la. Agora, quando qualquer pessoa assim autorizada imerge um crente em águas, em nome do Pai, Filho e Espírito santo [sic], isto é considerado e reputado como o batismo de Cristo; mas quando um estrangeiro à república de Israel, por um falso poder realiza uma tal ação, por mais que o faça exatamente e à semelhança daquela que é feita pelo poder e autoridade do Senhor Jesus Cristo, dado à sua Igreja, ainda assim ele é senão uma falsificação, ou um batismo impostor, e não do batismo de Cristo.
[…]
Objeção. Se qualquer objetar, Que embora eles tenham recebido o Ofício do ministério dos Bispos, ainda assim eles o receberam como Presbíteros², e não como se fossem Senhores Bispos.
Resp. Para que os Bispos sejam legítimos Presbíteros, eles devem ser Presbíteros escolhidos por uma Igreja verdadeira, que é uma Congregação constituída por Crentes e Santos por chamado, At. 2.41. 1 Cor. 1.2. Fp. 1.7. Rm 1.7.8. Como o Artigo dezenove da doutrina da Igreja da Inglaterra também testemunha, o qual diz que A Igreja visível de Cristo é uma Congregação de homens fieis &c. Agora, que eles mostrem onde ou quando uma tal Igreja constituiu, seja os Bispos ou qualquer de nossos Sacerdotes, como Ministros ou Presbíteros por Eleição, como as Escrituras testificam que deve ser feito em toda Igreja, At. 14.23. E como o ingresso em todos os Ofícios ordinários (dos quais nós falamos) pressupõe, por necessidade, uma Igreja, por eleição plena eles devem ingressar, e assim também sua manutenção exige uma Igreja, na qual [o oficial] deve subsistir como um súdito e à qual deve ministrar. Mas a ilegitimidade do chamado do Ministério da Igreja da Inglaterra em todos esses aspectos é reconhecida por muitos deles mesmos, os quais, portanto, renunciaram e rejeitaram seu ministério, recebido ali dos Bispos, e saíram do local, tornando-se homens leigos até que fossem autorizados novamente pela Eleição e indicação de uma tal Congregação que eles concebiam ser uma Igreja verdadeira. […]
E se for objetado que eles, não sendo Sacerdotes de Missa³, não são Anticristãos:
Eu respondo [que] eles têm o mesmo Ofício que os Sacerdotes de Missa, embora reformados em muitas coisas; e isto ambas a doutrina e prática da Igreja da Inglaterra, reivindicando a sucessão de Roma (como o Livro da Ordenação e alocação4, previamente citado, evidentemente confirma) [sic]. Todos os sacerdotes de Missas nos tempos da Rainha Maria […] continuaram Ministros em suas muitas Congregações nos tempos da Rainha Elizabeth em virtude de sua Ordenação prévia, e como tais são os sacerdotes de Missas hoje – embora Ordenados em Roma, receberam e continuaram na Igreja da Inglaterra sob as condições supraditas, sem nenhuma nova Ordenação. E, haja vista que é sua própria afirmação constante que a Ordenação (como eles a nomeiam) constitui um Ministro, deve-se seguir que, sem novas Ordenações, sem novos Ministros; mas eles permanecem ainda os velhos sacerdotes de Missas, apenas reformados naquele tipo de Missar, e por isso [permanecem] Anticristãos.
[Obj.]Mas nem todos são assim constituídos Ministros, porque alguns são escolhidos pelas assembleias paroquiais.
[Resp.] 1. Há muito poucos assim escolhidos.
2. As Assembleias Paroquiais5 não são tais Igrejas, às quais o poder de Cristo é comissionado, At 2. 41. 44. 47. 1 Cor. 1. 2., Rm 1.7,8. Fp 1.7.
3. Estes [já] são ministros antes da escolha e depois de deixarem a Paróquia, e tampouco pode a Paróquia escolher qualquer um, senão aqueles Ministros ordenados pelos Bispos, e não são constituídos Ministros, portanto, pela sua escolha.
A Treatise of the vanity of childish baptisme, pp. 12-17, passim.
¹ Isto é, da forma adequada, pela autoridade constituída – neste caso, o estado.
² No original, Elders, i.e., anciãos.
³ No original, Mass-Priests, ou seja, padres católicos.
4 Booke of Ordination and place, no original.
5 Assembleias Paroquiais, aqui, não é o mesmo que Congregações. Ritor provavelmente tem em mente um corpo eleito entre clérigos e civis pertencentes a uma determinada paróquia que se reuniam para discutir e deliberar sobre questões civis e religiosas. Os herdeiros dessas assembleias são, possivelmente, os Conselhos Paroquiais.
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Em primeiro lugar, é conclusivo que, para Ritor, a Igreja da Inglaterra era Anticristo, em seu sentido predicativo. Ritor se alinha, portanto, à longa tradição separatista que considera a Igreja Anglicana herdeira direta da Igreja Romana, e deixa isso claro em vários momentos de seu texto. A Igreja Romana, por sua vez, foi vítima e algoz da “Grande Apostasia”, ou “Grande Deserção”, isto é, a Igreja abandonou a verdade das Escrituras, a constituição eclesiástica bíblica e a correta administração dos sacramentos. Assim, Ritor parte da certeza da ilegitimidade da Igreja Romana para constatar a bastardia da Igreja da Inglaterra.
Um de seus argumentos mais interessantes diz respeito à continuidade da ordenação ministerial dos sacerdotes da Igreja Anglicana. (Ritor, aliás, questiona a própria ideia de “ordenação”, originalmente um sacramento da Igreja Católica, mas de respaldo bíblico questionável. Nós, batistas reformados, faríamos bem em abrir essa discussão). A Inglaterra quinhentista foi cenário de constantes reformas e contrarreformas. Quando Maria Tudor sobre ao poder (1553-58), a Reforma Henriquina é desfeita e vários sacerdotes católicos são conduzidos ou reconduzidos ao poder. Muitos “anglicanos” convertem sua lealdade à Roma. Mas Maria durou pouco. Em 1558, Elizabeth retoma os esforços reformistas e, este é o ponto de Ritor, a maior parte dos antigos sacerdotes católicos assumem imediatamente as vestes anglicanas, sem qualquer nova cerimônia de “ordenação”. Isso significa que a autoridade dos sacerdotes anglicanos é proveniente da ordenação católica. O reconhecimento e legitimidade de seu ministério é válido aos olhos da igreja apóstata, do Anticristo, e não perante as verdadeiras congregações de santos visíveis.
A rigor, tais sacerdotes não podem ser nem mesmo considerados verdadeiros Ministros do Evangelho. Sua “ordenação” se deu pela autoridade de outros Bispos, e não, via de regra, a partir de uma igreja. No contexto anglo-romano, o sacerdote ordenado continua sendo reconhecido como um ministro ainda que abandone sua paróquia e se dedique a outras tarefas. Ora, indagaria Ritor, pode haver um pastor sem aprisco? É lícito tomar um homem como pastor, se não há rebanho que clame pelo seu nome? Seu título de ministro é sustentado somente pela estrutura burocrática eclesiástica nacional, e nada além disso.
Tudo isso Ritor emprega, como é o propósito de sua obra, para rechaçar o batismo da Igreja da Inglaterra. Voltarei outras vezes a este ponto. Os Batistas Particulares demonstram, desde muito cedo, uma profunda inquietação com a legitimidade do batismo paroquial. As preocupações com a santidade da igreja, as reflexões sobre a teologia aliancista e os incômodos acerca do batismo formam um pacote inseparável que conduz os membros da igreja JLJ a repensarem suas práticas e traçarem novos caminhos.
Cumpre frisar, em suma, a certeza inabalável de Ritor de que a Igreja da Inglaterra é falsa e de que não pode haver comunhão com ela. Como um forasteiro pretendendo administrar rituais e cerimônias cívicas em país alheio, assim são os os “ministros” da Igreja da Inglaterra administrando as ordenanças de Cristo, mesmo não pertencendo ao seu reino. Bispos não pertencem ao Israel de Deus. Bispos são Anticristo. Não há comunhão entre a luz e as trevas.
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RITOR, Andrew. A Treatise of the Vanity of Childish Baptisme. Londres, 1642.
RENIHAN, Samuel. From Shadow to Substance: The Federal Theology of the English Particular Baptists (1642-1704). Oxford University Press, 2018.
As críticas e bibliografias apresentadas têm me dado a oportunidade de conhecer melhor o histórico Batista inglês. Excelentes publicações! Parabéns Pedro Issa.
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Obrigado, meu irmão, pelas palavras generosas! 😉
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