Daniel Defoe, Edward Baber e o problema da Peste

Mas a visitação [da Peste] os reconciliou novamente, pelo menos por um tempo, e tolerou-se que muitos dos melhores e mais valiosos ministros e pregadores dos Dissidentes tomassem lugar nas igrejas em que os incumbentes haviam fugido, como muitos o fizeram, não sendo capazes de suportar; e o povo se arrebanhava sem distinção para ouvi-los pregar, não questionando muito sobre quem ou de qual opinião eram. Mas depois que a peste findou, aquele espírito de caridade esmaeceu e, cada igreja sendo suprida novamente com seus próprios ministros, ou outros apresentados onde o ministro morrera, as coisas voltaram novamente ao seu velho caminho.

Daniel Defoe, Um Diário do Ano da Peste

*

Em obra não datada, intitulada Certain Queries Propounded to the Churches of Christ, and all that fear God, and love the appearing of King Jesus, o batista Edward Barber apresenta 47 questões, em nítido caráter retórico, a fim de defender suas posições puritanas, congregacionais e batistas e, ao mesmo tempo, condenar as práticas da Igreja da Inglaterra. Barber justifica sua obra como uma defesa dos ataques de Daniel Featley (The Dippers Dipt) e Thomas Edwards (Gangraena), por isso a obra é certamente posterior a 1647. Uma datação mais precisa exigiria um estudo mais minucioso. Não é impossível considerar que possa ter sido escrita por volta de 1665, data da Grande Peste de Londres, considerando que Barber deve ter falecido na década de 1670. Todavia, sua última obra que chegou até nós data de 1651 e possui tipografia bastante semelhante a esta obra em questão. Seja como for, em sua última inquirição, Barber suscita problemas acerca das práticas sacerdotais da igreja nacional em períodos de surtos pandêmicos.

Questão 47. Se o fechamento de casas devido à infecção, ou à Peste, como eles chamam, não é um fardo negligente, uma opressão a este Reino e uma mera invenção, para grande pesar dos indivíduos e abuso de diversas passagens escriturísticas; [e] contrária à regra da Equidade e à ordem de Cristo, que diz: “E como vós quereis que os homens vos façam, da mesma maneira fazei-lhes vós também” [Lc 6:31]. E no último dia, quando Cristo há de dizer “apartai-vos de mim, ó amaldiçoados ao fogo eterno, preparados para o demônio e seus Anjos!”, uma das principais razões será “Eu estava preso e doente, e vós não me visitastes”. Achais que será um bom argumento dizer “vós estáveis doentes com a peste ou praga”? Certamente que não. Cristo não se exime de nenhuma doença, mas diz [que] os fios de cabelo de sua cabeça estão contados; e um pássaro não cai no chão sem a providência de Deus, Mt 10: 29, 30, 31.

Uma vez mais, embora muitos, insipientemente, argumentariam [a favor dessa prática] a partir da clausura da Lepra, vós podeis facilmente perceber quão grosseiramente eles abusam das Escrituras. Primeiramente, eles [os leprosos] nunca foram enclausurados, como eu humildemente entendo, por medo da infecção, mas para manter a Congregação limpa; o que, antes, tipificava o afastamento daqueles de vida escandalosa e a Excomunhão a ser executada sobre grandes transgressores: Como (em primeira Coríntios, capítulo cinco, versículos 4 e 5) a pessoa Incestuosa deve ser lançada fora, mas o Leproso não deveria ser mantido longe do Sacerdote; antes, Arão e seus filhos deveriam ter acesso a eles e observá-los em todas as ocasiões, como é claro por todo o Capítulo 13 de Levíticos. Mas os Sacerdotes destes tempos [de hoje], embora recebam seus dízimos, correm da Peste, assim como alguns fugiram dos Cavaliers¹, ou correm atrás de um rico Benefício, deixando qualquer um assumir seu rebanho. Como diz João (capítulo 10, versículos 10, 12, 13), aquele que é um empregado, e não o Pastor, e cujas ovelhas não são suas, vê os lobos se aproximando, deixa as ovelhas e foge, e os lobos as devoram e dispersam as ovelhas. O empregado foge porque é empregado e não se importa com as ovelhas, mas o bom pastor dá sua vida pelas ovelhas. E, como Cristo, o cabeça e verdadeiro Pastor (Isaías 40:11, Ezequiel 34:23 até o fim do capítulo), seus fieis Ministros e servos também [podem dizer], como Paulo se expressa (Atos 21:3), “Que fazeis, chorando e entristecendo-me o coração? Porque estou pronto não só para ser amarrado, mas até para morrer em Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus”.

¹ Cavaliers: Exército real durante a Guerra Civil Inglesa (1642-51). A colocação de Barber é curiosa, considerando que os anglicanos convictos tendiam a tomar o lado do rei na disputa com o Parlamento.

Certain Queries, p. 13.

Barber aborda uma questão sensível no século XVII: que fazer em contextos de pandemia? No caso, os surtos pandêmicos até o século XVIII geralmente disseminavam alguma modalidade de peste (bubônica, pulmonar ou septicêmica). Daniel Defoe (1660-1731), célebre autor de Robinson Crusoe, descreveu com riqueza de detalhes as encruzilhadas e dilemas religiosos em momentos de peste, em sua obra Um Diário do Ano da Peste. Ao contrário do que geralmente se imagina, a obra não é um relato histórico. Trata-se, antes, de uma obra muito peculiar, uma espécie de “jornalismo ficcional”. Defoe trabalha com dados concretos e reais e narra sua história como se tivesse vivido a Grande Peste de Londres (1665) em sua maturidade – mas contava, na verdade, com apenas 5 anos de idade, e nisso entra sua veia romancista.

Da mesma forma, muitos dos clérigos morreram, e outros partiram para o interior; pois realmente era preciso uma firme coragem e uma forte fé para que um homem não apenas se aventurasse ficar na cidade em tempos como esses, mas também se arriscasse a ir à igreja e executar o ofício de um ministro para uma congregação na qual ele teria razão para acreditar que muitos estariam, de fato, infectados com a peste – e fazer isso todos os dias, ou duas vezes por dia, como em alguns lugares era feito.

É verdade que as pessoas demonstravam um zelo extraordinário nesses exercícios religiosos e, como as portas das igrejas estavam sempre abertas, as pessoas iam sozinhas a todo o tempo, estando o ministro oficiando ou não, e mantendo-se em bancos separados, punham-se a orar a Deus com grande fervor e devoção.

[…]

Ademais, havia algumas pessoas que, a despeito do perigo, não se omitiam publicamente de frequentar a adoração de Deus, mesmo nos períodos mais perigosos; e embora seja verdade que a grande maioria dos clérigos de fato fechou sua igreja e fugiu, como outras pessoas também fizeram pela segurança de suas vidas, ainda assim nem todos o fizeram. Alguns arriscaram-se a oficiar e a manter as assembleias do povo com constantes orações e, às vezes, sermões ou breves exortações ao arrependimento e reforma, e isso até que alguém continuasse vindo para ouvi-los. E os Dissidentes também fizeram o mesmo, e até nas próprias igrejas onde os ministros paroquiais estavam ou mortos ou exilados; mas não havia nenhum espaço para fazer tais diferenças em tempos como esses.

Era de fato uma coisa lamentável ouvir as murmurações miseráveis de pobres criaturas moribundas clamando por ministros para confortá-las e orar com elas, para a aconselhá-las e dirigi-las, rogando a Deus por perdão e misericórdia e confessando em alta voz seus pecados passados. Ouvir quantas advertências eram proferidas por penitentes moribundos para que outros não se eximissem ou retardassem de seu arrependimento para o dia da aflição era algo que faria sangrar o coração mais duro (…).

Um Diário do Ano da Peste, passim.

No que tange à reflexão de Barber, há pelo menos dois elementos interessantes. Em primeiro lugar, ele contrapõe o imperativo do cuidado pastoral ao oportunismo sacerdotal. A negligência no cuidado dos doentes, segundo Barber, é um dos sinais que revelam aqueles que invocam o nome do Senhor em vão, especialmente se o fazem com os bolsos cheios dos dízimos dos fieis. Em segundo lugar, Barber insere uma interpretação tipológica inusitada para o contexto. Ele entende que o distanciamento social dos leprosos não é uma prática que deva ser seguida na era cristã porque ela tipificava, na Velha Aliança, a pureza espiritual do povo de Deus. A exclusão física da comunidade, com fins da manutenção de sua pureza, teria sido substituída, na Nova Aliança, pela prática da excomunhão da igreja local, como Paulo prescreve em 1 Coríntios 5:4-5.

Será que temos, como pastores, endereçado as doenças espirituais de nossa igreja com o mesmo vigor com que temos procurado nos proteger da peste?

*

BARBER, Edward. Certain Queries Propounded to the Churches of Christ, and all that fear God, and love the appearing of King Jesus. Londres, data não identificada.

DEFOE, Daniel. Um diário do Ano da Peste. Porto Alegre: Artes e Ofício, 2002.

Uma resposta

  1. Pingback: Daniel Defoe, Edward Baber y el problema de la plaga

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

the many-headed monster

the history of 'the unruly sort of clowns' and other early modern peculiarities

Sacred & Profane Love

Conversations about Art and Truth

Pactualista

Subscrevendo a Confissão de Fé Batista de 1689

Crawford Gribben

mainly on John Owen and J.N. Darby

Queens' Old Library Blog

Rare Books and Manuscripts at Queens' College - University of Cambridge, UK

Petty France

Ressourcing Baptistic Congregationalist and Particular Baptist History

Reformed Baptist Academic Press

Uma imersão em Patrística Batista

Contrast

The light shines in the darkness, and the darkness has not overcome it

IRBS Theological Seminary

Training Ministers to Preach the Gospel (2 Timothy 2:2)

HangarTeológico

Uma imersão em Patrística Batista

The Confessing Baptist

Uma imersão em Patrística Batista

Reformed Baptist Fellowship

Reformational, Calvinistic, Puritan, Covenantal, Baptist

Reformed Baptist Blog

Uma imersão em Patrística Batista

%d blogueiros gostam disto: