John Smyth: Batismo, Eclesiologia e Separatismo

Como é sabido, John Smyth foi um dos primeiros ingleses a abandonar os quadros da igreja oficial e defender a instituição de uma igreja credobatista. De suas ações é que deriva a formação da primeira igreja propriamente batista, ainda em solo holandês e mais tarde repatriada sob os auspícios de Thomas Helwys. A figura controversa de John Smyth, que ainda hoje paga o preço por seu suposto si-batismo, é frequentemente associada aos anabatistas holandeses, especialmente em sua versão menonita (o que é uma ironia, já que foi justamente após o reconhecimento do erro de seu si-batismo que Smyth decidiu ingressar oficialmente na igreja menonita, sendo novamente batizado). É interessante notar, entretanto, que Smyth possuía uma leitura pessoal de seus atos no contexto histórico e religioso específico da Inglaterra seiscentista.

Em seu importante – e frequentemente ignorado – tratado The Character of the Beast or the False Constitution of the Church (1609), Smyth descreve como enxerga e defende seu afastamento do separatismo inglês. O tratado se endereça, iminentemente, às igrejas separatistas de Amsterdã (Francis Johnson e John Robinson), tendo como interlocutor direto Richard Clifton, membro da igreja de Robinson. Mas não é difícil perceber que seus ataques respingam, também, diretamente sobre os puritanos ingleses.

Deve ser considerado muito estranho que um homem tenha mudado diversas vezes sua religião, e não pode ser considerada uma qualidade louvável em nenhum homem o fazer muitas alterações e mudanças em questões tão graves como são os casos de consciência. Mas se a constância é recomendável em qualquer coisa, ela é mais recomendável nas melhores coisas, que são a Religião, e se a inconstância é digna de reprovação em questões de menor estima, é ainda mais condenável em questões de Salvação. A esse respeito, os mais sábios e mais religiosos homens têm sido sempre os mais constantes em sua profissão e fé, e pessoas inconstantes não podem escapar à merecida imputação de loucura ou fraqueza de julgamento nisso.

Isso deve ser verdadeiro (e nós o confessamos) se uma condição for admitida, que a Religião que um homem deixou seja a verdade. Pois do contrário, deixar uma falsa Religião é louvável, e manter uma falsa Religião é condenável. Para um homem de um[a religião] Turc[a] se tornar um Judeu, de um Judeu se tornar um Papista, de um Papista se tornar um Protestante, são todas mudanças louváveis, embora todas elas recaiam sobre uma e mesma pessoa em um ano, não, mesmo que seja em um mês! De sorte que não mudar a Religião é simplesmente mau; e, portanto, que nós abandonemos da profissão do Puritanismo para o Brownismo, e do Brownismo para o verdadeiro batismo Cristão, não é simplesmente mau ou reprovável em si, exceto se for provado que nós tenhamos decaído da verdadeira Religião. Se nós, portanto, sendo anteriormente enganados no caminho do Pedobatisterismo, agora abraçamos a verdade no verdadeiro batismo Apostólico Cristão, que nenhum homem impute isto como uma falha sobre nós. (…) Esta sendo a controvérsia agora, entre nós e a Separação, comumente chamados Brownistas (…). Que fique sabido, portanto, para toda a Separação, que nós os consideramos, a respeito de sua constituição, serem uma meretriz tanto quanto sua Mãe Inglaterra ou sua avó Roma, de cujos lombos ela saiu; e embora outrora, em nossa ignorância, nós a tenhamos reconhecido como uma verdadeira Igreja, sendo agora melhor informados nós revogamos aquele nosso julgamento errôneo e protestamos contra ela, tanto por sua falsa constituição, quanto por seu falso ministério, culto e governo. A verdadeira constituição da Igreja é de uma nova criatura batizada em [nome do] Pai, do Filho e do Espírito Santo. A falsa constituição é de crianças batizadas. Nós professamos, portanto, que todas aquelas Igrejas que batizam crianças são da mesma falsa constituição, e todas as Igrejas que batizam a nova criatura, aqueles que são feitos Discípulos pelo ensino, homens confessores de sua fé e seus pecados, são de uma verdadeira constituição; e portanto, a Igreja da Separação sendo da mesma constituição que Inglaterra e Roma, é uma filha desnaturada de sua mãe Inglaterra e sua avó Roma, que sendo da mesma genealogia e geração (…) ousa, não obstante, limpar a própria boca e chamar sua mãe e avó de adúlteras. (…) Pois embora seja necessário que nos separemos da Inglaterra, nenhum homem pode separar da Inglaterra enquanto uma falsa Igreja a menos que ele também se separe do batismo da Inglaterra, que fornece à Inglaterra sua constituição; e qualquer que mantém o batismo da Inglaterra retém em todo a constituição da Inglaterra e não pode, sem pecado, chamar a Inglaterra de meretriz como nós o fizemos (…).

Mas a Separação, eles dizem que a Inglaterra tem uma falsa constituição, e é uma falsa Igreja, e [dizem] ser separados dela; no entanto eles dizem também: a Inglaterra tem um verdadeiro batismo (que é uma verdadeira constituição) da qual não se deve se separar. Pois uma verdadeira constituição e verdadeiro batismo são um e o mesmo; assim também uma falsa constituição e um falso batismo; de forma que os discursos e ações da Separação são contraditórias neste particular.

(The Character of the Beast, introdução não paginada)

O trecho se encontra no prefácio da obra e, como todo bom prelúdio, pretende oferecer o propósito, sentido e finalidade do tratado. A obra em si é uma defesa do credobatismo, mas é muito significativo que o prefácio orbite em torno de temas eclesiásticos. Smyth chama a Igreja Católica de Roma, a Igreja Anglicana de Inglaterra, os Separatistas de Separação (ou Brownismo) e o seu movimento, que poderíamos anacronicamente chamar de “Igreja Batista”, de Batismo Cristão. Sua leitura histórica é a seguinte: a Igreja Anglicana separou-se formalmente da Igreja Católica e os separatistas cindiram formalmente com a Igreja Anglicana. Mas nenhuma delas teria realizado uma separação de fato da “grande meretriz”, i.e., Roma, já que mantiveram sua prática batismal. Não que a manutenção de um sacramento seja suficiente para denunciar a insuficiência da ruptura, mas é que o sacramento batismal, em específico, tem consequências de enorme importância para a igreja. No limite, argumenta Smyth, o batismo é o que define a constituição da igreja. Se a membresia de uma igreja se define a partir de seu batismo, a diferença entre o pedobatismo e o credobatismo é uma diferença gritante no âmbito eclesiológico. Para Smyth, o credobatismo não era uma doutrina avulsa, um penduricalho teológico, tampouco um artigo de somenos importância nos tomos teológicos. O batismo, na visão de John Smyth, está diretamente ligado à Eclesiologia. O batismo explicita na prática a teologia de fundo sobre a igreja. O batismo evidencia como compreendemos a composição da igreja e, consequentemente, no quê ela constitui. É de se lamentar que os batistas tenham perdido de vista, recentemente em sua história, essa relação íntima entre batismo e igreja.

Smyth não concebe, assim, que uma igreja verdadeira possa ser formada por homens que não foram instruídos nos ensinos de Deus nem professaram sua fé em Cristo, e o pedobatismo seria o instrumento pelo qual essas falsas igrejas estariam sendo erigidas. Ele demonstra uma visão clara dos eventos históricos que conduziram ao separatismo inglês e reconhece que sua própria deriva é imediatamente em relação aos Separatistas. Mas a conclusão decorrente desse raciocínio é que o movimento de Smyth seria o primeiro de matriz inglesa a realmente apartar-se da falsa igreja de Roma. Nesse sentido, Smyth difere consideravelmente dos Batistas Particulares. Três décadas mais tarde, estes não teriam problema em reconhecer as importantes rupturas do movimento Reformado e buscariam se aproximar teologicamente dos pedobatistas ingleses, sem contudo comprometer sua teologia batismal. A diferença, portanto, é que Smyth enxergava sua reforma como a verdadeira Reforma. Ele estaria dando o primeiro passo da Reforma no sentido da constituição de uma igreja verdadeira, enquanto os Batistas Particulares entendiam que estavam dando apenas o último passo no caminho. Conquanto a visão de Smyth seja passível de muitas críticas, a relação que estabeleceu entre o batismo e a constituição das igrejas é de grande relevância para a discussão sobre o pedobatismo e para a compreensão do verdadeiro significado do movimento batista no século XVII.

Robert Torbet explicou a questão da seguinte maneira.

Os Batistas Gerais, como veremos, eram originalmente Separatistas Ingleses ou Puritanos que romperam inteiramente com a Igreja da Inglaterra, a qual eles consideravam como uma igreja falsa, pervertida pelo erro. Seu espírito e ponto de vista sectário adentrou na sua vida de igreja Batista. Os Batistas particulares ascenderam do Independentismo não-Separatista, alguns anos depois. Como os Separatistas, os não-Separatistas eram congregacionais em seu governo, mas eles eram mais ecumênicos em espírito. Eles não estavam dispostos a renunciar à Igreja da Inglaterra, como sendo completamente corrupta. Ademais, eles buscaram manter algum laço de unidade entre eles e os Cristãos de outras comunhões. Esse espírito adentrou em sua vida eclesiástica, um fato que é documentado por uma leitura de suas afirmações confessionais acerca da natureza da igreja.

(A History of the Baptists, p. 22.)

Mas, como A. C. Underwood lembrou, ao final de sua vida Smyth capitulou de algumas de suas posições.

Em seu último livro, que ele provavelmente nunca terminou e que foi publicado por um de seus seguidores pouco após sua morte, Smyth admite que ele foi ‘um tanto pródigo ao censurar e julgar os outros’. Ele expressa arrependimento por qualquer coisa severa em seus escritos contra a Igreja da Inglaterra e os Separatistas. Ele retrata todas as ‘palavras, frases e discursos cortantes e amargos’

(A History, p. 45.)

Um parágrafo específico mostra que Smyth, de fato, fez uma trajetória rumo ao ecumenismo protestante. Parece que seus últimos dias entre os Waterlanders lhe imprimiram um espírito bastante irênico.

Eu professo que a diferença de julgamento em questões circunstanciais, como são todas as coisas externas da Igreja, não hão de me levar a recursar a irmandade de qualquer Cristão penitente e fiel que seja. E agora, deste dia em diante, eu ponho um fim, com todos os homens, a todas as controvérsias e questões sobre a Igreja exterior e cerimônias, e decido empregar meu tempo nas questões principais que consistem da salvação. Sem areependimento, fé, remissão de pecado e a nova criatura não há salvação. Mas há salvação sem a verdade de todas as cerimônias externas da Igreja exterior.

(Smyth Apud Whitley, Works, Vol. II, p. 755.)

*

SMYTH, John. The Character of the Beast or the False Constitution of the Church, 1609.

TORBET, Robert G. A History of the Baptists. The Judson Press, 1963.

UNDERWOOD, A. C. A History of the English Baptists. London: Kingsgate Press, 1947.

WHITLEY, W. T. The Works of John Smyth, 2 vols. Cambridge University Press, 1915.

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